Sou carioca e vivo em Niterói. No Rio, se ainda morasse no lugar onde passei a infância, provavelmente já teria sido vítima de alguma bala achada; em Niterói, não há absolutamente nada a se fazer se você não dispõe de plata pra jantar nos bristôs chiquês da orla (?) de São Francisco. Em suma, o que fazer numa 3a feira de final de férias se você já visitou exatamente todos os museus e espaços culturais do condado da Guanabara e não há no céu o sol praiano de verão? Uma idéia demoníaca cismou em perturbar-me a mente: queria estudar a gente da minha terra, observá-la etnograficamente, experimentar seu habitat num legítimo e intensivo exercício antropológico - andar de trem partindo da Central.
Uma vez estabelecido o objeto de pesquisa, fazia-se necessário traçar a metodologia - e decidimos pelo ramal Saracuruna, o segundo ramal ferroviário mais longínquo que restou depois do sucateamento das vias férreas fluminenses. Ainda na década de 60, era possível atravessar todos os estados do sudeste de trem, em viagens lentas, mas agradabilíssimas, com um belvedere de dar gosto. Mas desde Gegê, passando por Kubi e os sucessores milicos, só sabiam pensar em petróleo, petróleo, Petrobras, estrada, estrada, estrada, asfalto, buraco, pedágio. Ferrovia? Ah, muito eficiente, barata em demasia e não consome tanto petróleo - não merece investimento. E aí jazem as malhas ferroviárias fluminense e brasileira, sepultadas por camadas de terra e mato, deitadas eternamente num berço esplêndido de resquícios da Mata Atlântica, montanhas e vales, margeando riachos e encontrando cachoeiras que, de tanto tempo intocadas, tornaram-se virgens. Acabaram as belíssimas jornadas Rio-São Paulo pelo Trem de Prata, as mais luxuosas composições brasileiras - restaram os trens da Supervia e da Central. É...
A memória ferroviária brasileira sobre-vive nas maquetes e recortes de ferreomodelistas como eu, mas sabemos todos que não há o que se fazer, a EFCB está em putrefação avançada, basta visitar a Estação Barão de Mauá (conhecida como Leopoldina) e vislumbrar antigas FA-1 assediadas pela oxidação, esquecidas, porém com tantas histórias a contar. Nas maquetes dos ferreomodelistas, no entanto, vivem todas, as escandalosas, a diesel, cidades e estações em art nouveau, fábricas, maquinária e marcas do Milagre Brasileiro. Tempos bons, diria o sr. Galileu Frateschi...
Voltando à homeríade, partimos da estação Central do Brasil (administrada pela Supervia) às 8:20h com destino a Saracuruna, distrito de Duque da Caxias. A composição, antiga e barulhenta, passa por toda a região da Leopoldina, bairros outrora pacatos e amistosos, por Brás de Pina, Parada de Lucas, Vigário Geral, Caxias e... a partir daí, é possível notar a gradação cidade-campo com paisagens cada vez menos cinzas e mais verdes. O 'interior' de Caxias ainda guarda arquitetura das décadas de 60-70 salpicada pelos 'novos miseráveis' às margens da malha. Quase de surpresa, a linha atravessa por baixo da Rio-Petrópolis e passa literalmente por dentro da Reduc até Piabetá, de onde parte finalmente para Saracuruna. De lá, exatos 57 minutos depois da partida da Central (não conseguia parar de pensar quanto tempo de carro levaria para fazer a tal viagem, justamente em hora de rush matutino), esperamos 5 míseros minutos para embarcar numa composição de 3 vagões de passageiros tracionada por uma U12C a diesel, uma relíquia ferroviária ainda viva. Após uma ligeira manobra por AMVs manuais (Aparelhos de Mudança de Via, conhecidos como 'desvios'), subimos por via única, já ao longe enxergando as montanhas da região serrana fluminense, no final da baía, passando por estações com nomes que me fizeram viajar a épocas românticas do subúrbio megalopolitano - Manoel Belo, Parada Angélica - dentre outros. Após cerca de 40 minutos, chegamos à última estação do ramal - Vila Inhomirim, Raiz da Serra, distrito de Magé.
O lugar parece fantasma, estático e antigo, algumas casas ainda guardam numeração em algarismos romanos nas fachadas. Atrás da rua da estação, um pequeno riacho, as ruínas da antiga fábrica da Estrela, e o início da Estrada Imperial da Serra Velha, construída por D. Pedro II, de pedras batidas. Ao longo da estrada, conforme nos foi contado, há ruínas de diversas construções do período imperial, igrejas do século XIX, casas grandes de senhores de engenho e café, tecelagens, dentre outras. Infelizmente a estrada é muito íngreme, e completamente inacessível às nossas frágeis carruagens pós-modernas.
De Inhomirim, após corajosa parada para almoço numa tal pensão do Vô Diu (comida caseira, R$ 3,50 o PF), pegamos um micro-ônibus para Petrópolis que segue por uma estradinha medonha de paralelepípedos, íngreme e sinuosa, mas que deve ser muito bonita, não fosse a teimosia da névoa que fechou a paisagem para balanço. Quarenta minutos e várias escoriações na bunda depois, chegamos num bairro suburbano de Petrópolis, subimos a pé pela patética Rua Teresa (que, um dia, devia realmente ser um grande pólo de comércio têxtil) e chegamos ao centro histórico com os pitorescos prédios imperiais, característicos dessa cidadezinha simpática.
A volta, de ônibus interurbano, igualmente agradável, reservou-me o prazer de admirar a serra de Petrópolis sem ter que dividir a atenção entre o barranco e o volante. Terminal Rodoviário Menezes Cortes e...? Descobri como é ridículo chegar de ônibus no Rio. Não há qualquer interligação com qualquer outro meio de transporte humano nas intermediações - o sujeito simplesmente fica, tal qual yo y mi mujer, sem saber o que fazer. A chegada a Ítaca ainda perdurou o suficiente para poupar-lhes a narrativa.
Moral da história: andar de trem é legal, é barato (é possível ir a Petrópolis por R$ 5,60), é uma oportunidade ímpar de estudar o cidadão metropolitano, comprar (pasmem) até uísque servido em copinho de plástico, absolutamente tudo por menos de R$ 2,00.
Em vindoura escrita, relatarei a próxima jornada a Guapimirim, também de trem, perfazendo o trecho mais longo da malha ferroviária de transportes de passageiros do nosso querido estado fluminense.
Até a próxima e grande abraço,
Rafael Lanzetti