Olá a tod@s,
escrevo hoje sobre as estratégias de interpretação de um texto poético, The road not taken de Robert Frost, autor norte-americano da Nova Inglaterra, a primeira região colonizada pelos peregrinos ingleses que inclui os estados do Maine, New Hampshire, Vermont, Massachusetts, Rhode Island, e Connecticut. Robert Frost (1874-1963), apesar de nascido na Califórnia, muda-se com sua família para a Nova Inglaterra após a morte de seu pai em 1885. Sua poesia é constantemente associada a essa região, pois utiliza como cenário para boa parte de sua lírica os bosques de conífera típicos do nordeste dos EUA.
Vou me abster aqui de quaisquer outras informações biográficas, a um clique (http://en.wikipedia.org/wiki/Robert_Frost) de distância de qualquer leitor mais curioso, e passar para a degustação do poema que, para mim, é um dos melhores escritos em língua inglesa.
Trata-se de The road not taken, que reproduzo abaixo:
Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;
Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,
And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.
I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I—
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.
Há pouco tempo, falando sobre interpretação textual em sala-de-aula, dei aos alunos o tal poema para que eles fizessem um breve skimming (uma leitura baseada em abordagem top-down cujo objetivo é depreender a ideia principal do texto e sua estrutura coerente). As impressões que eles me comunicaram deram conta do que geralmente chamo de "estrutura coerente superficial" ou "fanopeia superficial".
Para continuar, preciso definir os conceitos de "fanopeia", "logopeia" e "melopeia". Esses três elementos textuais da tipologia literária foram criados por Ezra Pound, tradutor, crítico e teórico da tradução do século passado. A "melopeia" é, para Pound, a musicalidade do texto literário, em especial do gênero lírico, o elemento "(...) no qual as palavras estão carregadas, além de seu significado simples, de alguma qualidade musical, que dirige a maneira ou a finalidade daquele significado". É possível perceber que, em algumas instâncias, a melopeia do texto lírico, notadamente, por exemplo, no caso dos poemas parnasianos, torna-se mais importante que o sentido do poema em si, significante torna-se mais importante que significado, para usar os termos saussurianos. A "fanopeia", por sua vez, é definida por Pound como a imagem gerada na mente dos leitores do texto enquanto o leem. Essa imagem, culturalmente determinada, é também propriedade idiossincrática, já que cada leitor forma, em sua mente, um cenário composto por elementos "apropriados", no sentido de "roubados do texto". A fanopeia de um texto é formada a partir de suas estruturas coesivas e coerentes, dos símbolos culturais presentes, e da "logopeia", "a dança do intelecto entre palavras; os hábitos especiais de uso, do contexto em que esperamos encontrar a palavra, do que habitualmente acompanha seus concomitantes costumeiros, suas posições conhecidas e seu jogo irônico". As línguas humanas oferecem diferentes possibilidades logopaicas, manipuladas com mais ou menos destreza pelos autores que as utilizam como ferramenta.
Muito bem, voltando à interpretação dos alunos, agora usando o termo técnico preciso, a fanopeia que os alunos expuseram durante o exercício foi aquela prontamente apontada por qualquer leitor descompromissado do poema de Frost, que reproduzo resumidamente a seguir:
Na primeira estrofe, o "eu" lírico, ao andar por um bosque, depara-se com uma bifurcação. Decide, então, observar o máximo que podia de cada uma das trilhas disponíveis.
Na segunda estrofe, o "eu" chega à conclusão de que as trilhas eram relativamente idênticas.
Na terceira, o "eu" toma um dos rumos, fica em dúvida se deveria voltar e tomar o outro, mas decide continuar.
Na quarta estrofe, o "eu" diz, com orgulho, que tomou a trilha menos percorrida, oferecendo-lhe uma vantagem misteriosa que teria feito sua vida ter valido a pena.
Interessa-me especialmente a logopeia e a fanopeia da última estrofe, cuja observação pode alterar radicalmente o caminho da interpretação do texto. Chego aqui à moral da história deste post blogueiro - o leitor descompromissado é tentado a se contentar com a estrutura fanopaica superficial. No entanto, para se deleitar com o intrincado jogo de linguagem da poesia, é preciso ir mais além. O próprio Frost disse, certa vez, que o The road not taken "is a very tricky poem", muito embora saibamos que o autor não mais detém o poder semântico sobre seu próprio texto; uma vez escrito, o texto pertence à língua, aos leitores, ao próprio autor (não vamos exclui-lo por completo), à cultura.
Vejamos como começa o poema: "Two roads diverged in a yellow wood". Abrindo parênteses, há aqui uma dificuldade imediata para os que se aventurarem a traduzir o poema, já que o conceito "wood" é bem diferente do que concebemos por "floresta", ou mesmo "bosque". Quando um brasileiro pensa numa "floresta", a fanopeia relaciona-se automaticamente a um clima tropical, a árvores frondosas e altíssimas, a onças, cobras e macacos; uma imagem completamente diferente da que o leitor norte-americano forma ao ler a palavra "wood" (normalmente "woods"), provavelmente composta de coníferas, um clima frio e uma atmosfera escura, esquilos e ursos. Fecha parênteses.
A palavra-chave do verso é "yellow". O que representa um "yellow wood"? Quando é que as folhas amarelam-se? O poema menciona folhas no chão; quando caem? O que representa o outono? O que representa o outono para o imaginário do brasileiro? E do norte-americano/europeu?
Na segunda estrofe, o poema deixa claro que os dois rumos eram "really about the same", com ênfase na palavra "about".
No último verso da terceira estrofe, após ter tomado um dos caminhos, o "eu" demonstra incerteza se deveria voltar. Será? O que pode querer dizer a palavra "doubted"? O "eu" tinha ou não tinha certeza do que estava fazendo? Consegue perceber que há margem para as duas interpretações?
Mas, na última estrofe, num brusco time shift, estão as duas palavras, a meu ver, mais importantes para a interpretação do texto - "sigh" e "difference". Das polissemias elencadas até agora, estas duas parecem-me ser as mais misteriosas. O que quer dizer "sigh"? Existe o "sigh" de "oh, man, I shouldn't have done that..."; mas também existe o "sigh" de "yeah, man, I did it, I made it!" De qual deles estamos falando?
Por fim, o que quer dizer o "difference"? É uma diferença para melhor ou para pior? O resultado final, o destino a que chegou o "eu" após ter tomado o caminho "less traveled by", foi positivo ou negativo? Aliás, sobre o que será de fato o poema - sobre o que se fez ou sobre o que se deixou de fazer? Repare novamente em seu título.
Segundo os teóricos da Estética da Recepção, muito bem representados na figura de Wolfgang Iser, todo texto possui "buracos interpretativos", são como queijos suíços. Alguns buracos são preenchidos automaticamente através de leitura descompromissada; alguns outros são preenchidos pela interpretação, produto de processos cognitivos por parte do leitor; outros ainda não são preenchidos, e devem permanecer assim, como no fatídico caso de Capitu e Bentinho. Betinho era ou não era corno? Resolver a polêmica, tapar o buraco com areia, diminui o texto, por retirar dele uma das possibilidades interpretativas que gentilmente oferece.
A leitura descompromissada ignora elementos fundamentais da logopeia dos textos, neste caso específico a polissemia lexical. A partir dessa ignorância, uma fanopeia com limites definidos é formada. O texto literário, no entanto, oferece muito mais, oferece buracos customizáveis. O texto literário é open source, podemos contribuir para a formação de sua estrutura fanopaica, e geralmente o fazemos a fim de moldar o texto para que se encaixe egoisticamente em nossas próprias expectativas. O cidadão liberal aprecia esse poema por considerar que Frost louva o livre-pensador, o ousado que toma o caminho menos trilhado e se dá bem no final. No entanto, o poema admite a possibilidade interpretativa exatamente contrária, a do viajante nostálgico que gostaria de ter tido a oportunidade de vislumbrar o caminho oposto.
A interpretação descompromissada é apropriadora. O deleite dos intérpretes mais profundos, no entanto, está justamente em reconhecer as possibilidades que o texto nos oferece, sem tomar partido de nenhuma delas, mas admirar suas resoluções hipotéticas.
É um excelente exercício interpretativo detectar, nos textos literários com os quais você entra em contato, uma estrutura logopaica mais rica, que aponte para os dois caminhos no bosque amarelo, em vez de apenas para um deles. Esse exercício de leitura não é limitado à apreciação de textos literários, mas desenvolve a capacidade de compreensão de qualquer texto. A escola brasileira, por décadas presa aos grilhões da gramática e da metalinguagem, parece nunca ter querido oferecer aos cidadãos em formação a capacidade de raciocínio independente, não-superficial, pois aponta fórmulas herméticas para a interpretação de seus textos e da vida.
A religião, o governo e a escola, os notáveis aparelhos ideológicos althusserianos, não admitem buracos. Mas é preciso cavá-los, pois eles existem...
Grande abraço,
Lanzetti