Ele foi, segundo muitos relatos de diferentes fontes, uma pessoa arrogante, prepotente, um chefe autócrata, mas também um visionário com ideias simples que redesenharam o traçado de muitos caminhos da indústria de tecnologia.
Tenho muita dificuldade em classificar as pessoas como "gênios". Até que alguém prove que o cérebro de gênios é capaz de realizar mais sinapses por milissegundo, ou que seus cérebros produzam reações químicas diferentes das que ocorrem num cérebro "normal", prefiro pensar que o dito "gênio" é um apenas humano que, através de esforço, treino, repetição, ambientação, concentração e divagação, concebe ideias cujas consequências (práticas ou teóricas) mudam um paradigma vigente.
Esse senhor não era expert em tecnologia. Na realidade, ele não sabia o que se passava exatamente dentro de um de seus produtos. Seu enfoque não era o de um analítico engenheiro hard-minded. Ele via o produto com um olhar holístico, como ele sempre gostava de dizer, "uma conjunção de tecnologia, praticidade e bom-gosto".
Essa visão que os nerds não tinham ao produzirem os primeiros computadores (basta lembrar que Woz não queria vender sua criação - o computador pessoal - a ninguém; ele teve que ser impelido) foi introduzida por essa figura meio hippie, meio mendigo, meio vagabundo de universidade. E essa mentalidade, imbutida, mas perceptível, em todos os produtos da Maçã, tornou a empresa diferente de todas as outras, inaugurando uma nova era de comercialização de produtos antes voltados a homens de óculos, camisa quadriculada e gravata; agora vendidos a pessoas (quase) normais como você e eu.
As (con/in)fluências que o levaram a esse caminho podem ser delineadas ao longo de sua história no campus, nos corredores, na Índia e na garagem de seus pais. O filósofo polonês Zygmund Bauman afirma com propriedade que todos nós temos escolhas - mesmo os prisioneiros, os dejetos sociais e os religiosos fundamentalistas - mesmo que as gamas de escolhas variem de pessoa para pessoa. Nossas vidas, assim, são determinadas pelas escolhas que fazemos; e as escolhas que fazemos dependem de 1. Destino e 2. Caráter.
Por "destino" entenda-se aqui apenas fatores que estão além do nosso alcance, sobre os quais não temos nenhum poder, nenhuma palavra; e não por um plano pré-determinado por uma força superior. As pessoas que conhecemos, os empregos que conseguimos e até a pessoa com quem nos casamos ou juntamos são bons exemplos de escolhas determinadas por fatores aleatórios, pelo destino.
Por "caráter" entenda-se aqui os fatores mentais, cognitivos, ideológicos, racionais e irracionais, que nos impelem a tomar determinadas decisões em detrimento de outras. Muitas dessas escolhas "por caráter" são superdeterminadas pelo incosciente, por instinto, por impulso animal, pelo medo e pela culpa. Isso significa que, infelizmente, nosso caráter não é o que gostaríamos de ter, é apenas o que temos.
Para os que não acreditam em planos pré-determinados por entidades superiores, nem na influência que uma entidade superior supostamente teria na vida humana, resta-lhes pensar que os acontecimentos, as contingências da vida são fruto de processos aleatórios somados a um pouco de vontade, capacidade e esforço. Esse senhor representa a conjunção de diversos processos aleatórios cuja consequência foi o sucesso, o reconhecimento e a fortuna (não necessariamente, mas também financeira).
Ter conhecido Woz, ter uma Kombi para vender e financiar os primeiros protótipos na garagem de seus pais, estudar caligrafia, aprender sobre a filosofia budista, ter sido pai prematuramente, ter conseguido invadir a Xerox para surrupiar suas ideias, ter sido expulso da companhia que ajudou a fundar, ter tido câncer e reconhecimento por parte de seus colegas e pelo público geral são apenas alguns dos fatores que, juntos, construíram a muralha de seu empreendimento em vida.
A conjunção de tecnologia, praticidade e bom-gosto desviou para um destino mais bonito os rumos desse mercado, assim como o iPod inaugurou um novo mercado, mudando a maneira como se consome música, o iPhone inaugurou um outro mercado e moldou a maneira como se fabricariam todos os telefones posteriores; o iPad criou, do quase nada, um mercado de produtos de consumo não-necessários, mas desejados. O sistema de dados e o computador criados na NeXT, a empresa criada após sua "expulsão" da Apple, a maneira como fez ressurgir a quase falida Pixar e sua volta triunfal à Maçã são testemunhos de sua capacidade gerencial e sua mentalidade visionária.
Sua vida pessoal (diga-se de passagem, hermeticamente protegida por ele) não nos interessa, muito menos a maneira como tratava seus funcionários e subalternos (nunca fui funcionário dele mesmo...), a obra de um homem não pode depender de suas realizações privadas - muitas das grandes figuras da história eram pessoas de comportamento duvidoso. É o legado que nos importa, a maneira como essas pessoas melhoraram as condições de vida na Terra, as ideias, mesmo simples, que mudam o rumo de antigos caminhos já trilhados demais.
Mas não se iluda - a motivação intrínseca dessas pessoas pode ser simplesmente a fortuna, e não há nada de mal nisso. A consequência da busca pela fortuna de uma pessoa como esse senhor é a popularização de ferramentas que tornam melhores nossos afazeres profissionais e nossos momentos de entretenimento. Novamente, sua vida pessoal pouco me interessa. Acredito, no entanto (e não tenho como prová-lo porque muito provavelmente nunca chegarei lá), que, depois de determinado nível de estabilidade econômica, a pessoa tenha outras motivações completamente diferentes - realização pessoal, fama e poder.
Finalmente, dentre os muitos paradigmas que esse senhor quebrou ao longo de sua carreira, foi o de que uma empresa moderna deve ser gerenciada pro-ativamente por seus funcionários, numa democracia quase anárquica. Esse senhor, convictamente autócrata, acreditava que um gerente deve participar de todas as etapas de criação e comercialização de um produto. Suas decisões ultrapassavam os limites de seu conhecimento técnico e penetravam em todos os setores da empresa, do design, passando pela engenharia de produto, até a política de preços. Uma empresa que possui esse regime tem a chance de se tornar, como a Maçã o é hoje, um baluarte do mercado e um exemplo a ser imitado. Para tanto, apenas uma condição é necessária - que esse autócrata seja uma pessoa como Steve Jobs.
"No man is an island, entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main. If a clod be washed away by the sea, Europe is the less, as well as if a promontory were, as well as if a manor of thy friend's or of thine own were: any man's death diminishes me, because I am involved in mankind, and therefore never send to know for whom the bells tolls; it tolls for thee."
John Donne.
Um abraço,
Rafael Lanzetti