Thursday, October 1, 2009

A morte do livro

 

Quando, nos idos de 1998, entrei para a universidade, meu sonho era ter uma biblioteca de, no mínimo, 5000 títulos. Hoje, meu sonho é me desfazer de, pelo menos, 90% dos livros que tenho. O que mudou desde então?

Em 1998, ano em que o Brasil acabara de vender-se à Nike entregar o título da Copa do Mundo à França, os ânimos tupiniquins não estavam lá nas alturas. Yo, no entanto, aproveitava os intervalos entre os jogos (em que raramente havia aula ou atividade de pesquisa na faculdade (sim, no Brasil, 22 milhonários correndo atrás de uma bola de R$ 200,00 são mais importantes que uma aula de latim) para frequentar assiduamente a livraria Leonardo da Vinci, no ed. Marquês do Herval, no Centro do Rio. Lá, paulatinamente fui apresentado às literaturas inglesa e norteamericana, e posteriormente também à alemã.

Cada livro adquirido era um pedaço de sonho realizado, o próprio cheiro dos acabamentos das edições me inebriavam, aos poucos percebi que o mal já estava inoculado – havia me tornado um bibliófilo.

Comprei The Grammar Book, os grandes dicionários (incluindo uma versão em dois volumes de 5000 páginas do Webster’s Unabridged, The Oxford Encyclopedia of Languages, The Oxford Encyclopedia of the English Languages, obras completas de Shakespeare, Dickens, Goethe, Schiller, Nietzsche, compêndios de filosofia, história, religiões, entre centenas de outros. Num breve período áureo, chegava a comprar pelo menos 2 ou 3 livros por semana. Um dos eventos mais ansiosamente aguardados era a Bienal do Livro, de onde sempre saía com algumas dezenas de exemplares.

Em casa, persuadi meus pais a se livrarem de boa parte de sua biblioteca anterior para ocupar as prateleiras com os meus livros. De onde vinha o dinheiro? Consequência da, sem dúvida, melhor época financeira da vida de um jovem – do período em que você trabalha, ganha seu dinheiro, mas vive ainda com seus pais – 100% de ativos e 0% de passivos, quer seja, meus salários bruto e líquido eram absolutamente iguais. Não havendo namorada para estorqui-lo com passeios, shopping e jantares, o dinheiro pode ser dedicado quase totalmente à sua educação.

Foi uma época importantíssima, boa parte da cultura que adquiri advém desses 2 ou 3 anos de bibliofilia. Outra boa parte é fruto das viagens que tive o prazer e a oportunidade de fazer. O fato é que, ainda com Windows 95 e, posteriormente, 98, pouco acesso à Internet, poucos recursos online, não poderia me imaginar sem a biblioteca em construção que tanto prezava.

Tudo começou a mudar no verão de 2001. Naqueles meses de aulas forçadas por greves periódicas (que, nas universidades públicas brasileiras, são, via de regra, como ciclos menstruais, podem atrasar um pouco, mas sempre vêm), adquiri meu primeiro computador diferente de um tenebroso IBM (daqueles que só admitem hardware próprio) e consegui finalmente convencer minha mãe a assinar um plano de internet em banda larga.

O mundo mudou para mim depois que conheci recursos como o Projeto Gutenberg, o Grade Savers, dentre tantos outros. Percebia, já naquela época, que o conhecimento do futuro estaria fora das páginas impressas.

Comecei a me interessar mais por tecnologia, virei um geek assumido, saí gastando tudo o que podia e o que não podia com aparelhos e acessórios para o computador (acho que quase todo pré/pós-adolescente do séc. XXI passará por essa fase). Comecei a explorar recursos de comunicação como o saudoso ICQ, o MSN e, posteriormente, o Orkut.

Dos meus muitos hobbies, quase todos foram começados ou desenvolvidos por conta de contatos ou recursos oferecidos pelo Orkut. Através do Orkut, conheci colegas de profissão e estabeleci contatos profissionais e comerciais. Através do MSN e do Skype, falo sem custos com meus clientes e colegas. A disseminação do e-mail permitiu contato permanente entre professor e alunos. Em 1998, quando fiz meu primeiro e-mail, apenas 2 de meus 20 alunos também tinham um endereço.

O livro, com a Internet, passou a não precisar mais de livrarias físicas. Já em 2001, sem muito tempo para me deslocar ao Centro da cidade, fazia boa parte de minhas compras na Leonardo da Vinci pelo site, com entrega quase gratuita em casa.

Descobri a Amazon.com, a Livraria Cultura e a Livraria Saraiva, portais online em que podia comprar livros, e ainda CDs, DVDs e software. Não havia mais muitos motivos para gastar praticamente uma tarde para visitar a livraria.

Em 1998, íamos à livraria para ver os lançamentos, perguntar preços, folhear os livros. As Bienais eram a assembleia de cúpula dos bibliófilos. Nelas trocávamos informações, ficávamos sabendo das novidades editoriais e tínhamos acesso a livros importados que não conseguíamos encontrar em nenhum outro lugar.

Este ano (2009), fui pela enésima vez à Bienal do Livro, e provavelmente nunca mais vou voltar. Os preços nos sites das livrarias são iguais ou, por vezes, menores que os preços oferecidos nos stands, o marketing é baseado nos best-sellers, mais fortes e lidos que nunca; os convidados, antes pessoas da estirpe de Affonso Romano, Veríssimo e Suassuna, foram substituídos por um cover de Michael Jackson, pelo Hulk e por Meg Cabot. Quando às novidades? Dois segundos depois de impressos, os livros aparecem em monstruosos banners nos sites das editoras ou são disseminados em listas de spam.

Enfrentei engarrafamento, percorri 57 Km, enfrentei filas como de gás na época da inflação, não pude entrar em todos os stands por conta das assembleias midiáticas em frente aos mesmos regadas a música eletrônica, das filas para receber um autógrafo de Ziraldo e Mauricio de Sousa, que ocupavam todo o espaço reservado àqueles que queriam aproveitar a oportunidade para ao menos ler os índices das obras que lhe interessavam, e da constância do fedor de suor de milhares de sovacos suados pela ineficiência do sistema de ventilação.

Quando cheguei em casa, algumas longas horas depois, entrei nos sites das editoras e li as informações que me interessavam.

No meu trabalho, de professor e tradutor, não posso me dar mais o luxo de, toda vez que precisar procurar o significado de uma palavra, levantar-me a bunda da cadeira, ir à estante, procurar o dicionário correspondente e folheá-lo até encontrar a palavra. Em vez disso, com cinco ou seis movimentos automatizados de dedo, encontro o que preciso nos meus muitos dicionários eletrônicos.

A Internet tornou-se a ferramenta fundamental de pesquisa do tradutor de hoje. Nela encontramos respostas para os abismos tradutórios que não encontraríamos em nenhum outro lugar. A miríade de informação acessível, se usada com critério e inteligência, pode representar a diferença entre um trabalho não-feito por falta de recursos e um trabalho muito bem feito.

Depois de algum tempo considerando o que vou escrever agora, sinto-me apto para escrevê-lo sem culpa: não há nada, nenhum recurso do livro impresso que não possa ser substituído ou melhorado pela mídia eletrônica. Estou falando de texto, fotos, vídeos, arquivos de áudio, hyperlinks, referências, facilidade de pesquisa, marcadores, recursos de resumo, indexação, agrupamento, envio, edição, compartilhamento, revisão, publicação, diagramação, distribuição, comercialização, remuneração aos autores e editores, ad infinitum.

Sempre que toco nesse assunto, recebo basicamente duas críticas – a de que os livros especializados só podem ser encontrados impressos; e a de que ler um livro através de um monitor é cansativo e nunca terá o mesmo appeal de segurar um livro nas mãos e folheá-lo.

Uma por vez:

Grande parte dos livros técnicos e especializados, de qualquer área do conhecimento humano, só podem ser encontrados em versão impressa. Verdade… por enquanto. De olho nesse mercado cada vez mais abocanhador, editoras no mundo e no Brasil já estão vendendo e-books (em vários formatos, inclusive em PDF) de livros especializados com o mesmo conteúdo das versões impressas. O único custo não cobrado é o da impressão. Os direitos autorais e o lucro da editora continuam intactos e movendo a engrenagem da produção editorial. As literaturas do mundo ocidental (e boa parte da literatura do extremo oriente) também já estão digitalizadas. Algumas escolas já trabalham exclusivamente com e-books, reduzindo consideravelmente o custo da famigerada lista de materiais de todo começo de ano. Hoje, grande parte dos livros de literatura já podem ser encontrados em versão digital; assim como uma parte dos livros técnicos e especializados (especialmente de áreas como medicina, informática, engenharia e TI). Num futuro não muito distante, é possível que todos os livros possuam versões digitais e impressas ou somente versões digitais. A ambição do projeto Google Books é digitalizar todos os acervos de todas as grandes bibliotecas do mundo.

Para os profissionais que usam livros de referência e precisam consultá-los com frequência, há um sem-número de versões digitais dessas obras para aparelhos celulares como o Iphone. Com o Iphone, um médico tem o compêndio de prognóstico, diagnóstico e farmacêutico (livros com milhares de páginas cada) em qualquer lugar que esteja, com recursos de referência e pesquisa imediata. Não há dúvida que esse tipo de recurso pode ser considerado até uma questão de saúde pública. Advogados têm seus códigos, técnicos em informática têm suas tabelas e diagramas de instalação e configuração, professores de línguas têm seus dicionários – todos dentro de um bolso da calça.

A digitalização de textos (oficial e extraoficial) é, em último caso, um recurso sem precendentes de socialização da cultura e da informação. Em quase dez anos de aquisição de livros impressos, consegui por volta de 2500 livros (metade da meta estabelecida em 98). Nos últimos 2 anos, colecionei em meu computador quase 20 vezes esse número. Isso mesmo, tenho, em meus dispositivos de armazenamento, quase 50 mil livros, acessíveis off ou online. E para quê? Pretendo lê-los todos? De modo algum, mas sei onde os encontrar assim que ou quando precisar deles.

Não há dúvida de que passei a ler muito mais depois que comecei a usar a mídia eletrônica. O fetichismo do bibliófilo deu lugar à genuína sede de conhecimento teórico e prático.

Na década de 90, para resolver um problema desconhecido no meu computador, tive que procurar o telefone de um técnico nas Listas Amarelas, esperar por sua disponibilidade por cerca de 4 dias, e pagar uma boa parte de minha mesada/salário pela visita (que, salvo engano, não resolveu o problema). Há algumas semanas, após perceber um erro desconhecido no meu computador (muito parecido com o que havia ocorrido em 98), acessei um fórum americano de técnicos em informática, pesquisei sobre casos parecidos com o meu, li alguns tópicos e resolvi o problema – a custo zero e em duas horas de pesquisa e aquisição de conhecimento. É importante enfatizar que, ao aprender para fazer, no exercício da autodidaxia, agrega-se conhecimento em vez de delegá-lo a terceiros.

No entanto, a última e fatídica crítica persiste – não é confortável ler um livro através da tela de um computador, e o feeling de pegar o livro nas mãos e folheá-lo na cama é evidentemente perdido.

Os chamados fetichistas do livro tem certa razão, é muito desconfortável ler trechos longos através do monitor de um computador. No entanto, monitores mais recentes, com taxas de varredura mais eficazes e sistemas antirreflexo facilitam bastante a leitura. É notável a diferença entre ler um texto num monitor CRT e num LCD de última geração.

Muitos gostam de ler na cama, ou em posições indescritíveis sem fotos, e para esses a leitura de textos digitais pode se tornar complicada… ou não. Há hoje uma enorme variedade de e-readers com touchscreen (como este abaixo) que, além de exibir textos, fotos e vídeos, podem ser usados para o acesso à Internet, edição de textos e outras muitas funções de um desktop.

sony-adds-touch-led-light-to-e-reader-1 Para aqueles que dizem que o barato de virar as páginas é perdido, há também os e-readers com telas de LCD touchscreen flexíveis, como este:

philips-flexible-screen-at-ces-2008 Nesse modelo, o usuário literalmente “vira” as páginas para avançar na leitura.

É a mesma coisa? Não, obviamente. O cheiro do papel esses e-readers não têm, assim como não terão o cheiro da gasolina ou o ronco do motor os carros elétricos; como não têm o “barato” de afinar os pianos digitais; como não têm o divertimento do pó de giz na mão os quadros digitais (e-boards); como não têm o legal de fazer força para desaparafusar as aparafusadeiras elétricas; como não têm o barato de carregar uma carteira cheia de notas e cartões os sistema de pagamento eletrônico; como não têm o legal de ter uma estante cheia de discos de vinil o sistema de compra de arquivos de música digitais.

Meu pai já reclamou que a invenção da calculadora fez as pessoas ineptas para fazer contas de cabeça. Nossa geração reclama que os adolescentes que leem pelo computador são ineptos para ler livros. Do que reclamará a próxima?

O mundo muda em progressão geométrica. A mentalidade dos que o mudam, no entanto, tenta acompanhar em progressão aritmética. O fato é que o livro do futuro é o livro sem folhas, sem desmatamento e, mais importante, o livro da socialização do conhecimento.

O livro pra mim está morrendo, e espero que descanse em paz. E pra você?