Thursday, October 6, 2011

O autocrata da Maçã

Esse senhor de 56 que prematuramente nos deixou hoje foi uma das personalidades que a humanidade pouco produz, mas de que tanto precisa para fazer deste pequeno e insignificante planeta um lugar melhor para seus igualmente insignificantes habitantes.

Ele foi, segundo muitos relatos de diferentes fontes, uma pessoa arrogante, prepotente, um chefe autócrata, mas também um visionário com ideias simples que redesenharam o traçado de muitos caminhos da indústria de tecnologia.

Tenho muita dificuldade em classificar as pessoas como "gênios". Até que alguém prove que o cérebro de gênios é capaz de realizar mais sinapses por milissegundo, ou que seus cérebros produzam reações químicas diferentes das que ocorrem num cérebro "normal", prefiro pensar que o dito "gênio" é um apenas humano que, através de esforço, treino, repetição, ambientação, concentração e divagação, concebe ideias cujas consequências (práticas ou teóricas) mudam um paradigma vigente.

Esse senhor não era expert em tecnologia. Na realidade, ele não sabia o que se passava exatamente dentro de um de seus produtos. Seu enfoque não era o de um analítico engenheiro hard-minded. Ele via o produto com um olhar holístico, como ele sempre gostava de dizer, "uma conjunção de tecnologia, praticidade e bom-gosto".

Essa visão que os nerds não tinham ao produzirem os primeiros computadores (basta lembrar que Woz não queria vender sua criação - o computador pessoal - a ninguém; ele teve que ser impelido) foi introduzida por essa figura meio hippie, meio mendigo, meio vagabundo de universidade. E essa mentalidade, imbutida, mas perceptível, em todos os produtos da Maçã, tornou a empresa diferente de todas as outras, inaugurando uma nova era de comercialização de produtos antes voltados a homens de óculos, camisa quadriculada e gravata; agora vendidos a pessoas (quase) normais como você e eu.

As (con/in)fluências que o levaram a esse caminho podem ser delineadas ao longo de sua história no campus, nos corredores, na Índia e na garagem de seus pais. O filósofo polonês Zygmund Bauman afirma com propriedade que todos nós temos escolhas - mesmo os prisioneiros, os dejetos sociais e os religiosos fundamentalistas - mesmo que as gamas de escolhas variem de pessoa para pessoa. Nossas vidas, assim, são determinadas pelas escolhas que fazemos; e as escolhas que fazemos dependem de 1. Destino e 2. Caráter.

Por "destino" entenda-se aqui apenas fatores que estão além do nosso alcance, sobre os quais não temos nenhum poder, nenhuma palavra; e não por um plano pré-determinado por uma força superior. As pessoas que conhecemos, os empregos que conseguimos e até a pessoa com quem nos casamos ou juntamos são bons exemplos de escolhas determinadas por fatores aleatórios, pelo destino.

Por "caráter" entenda-se aqui os fatores mentais, cognitivos, ideológicos, racionais e irracionais, que nos impelem a tomar determinadas decisões em detrimento de outras. Muitas dessas escolhas "por caráter" são superdeterminadas pelo incosciente, por instinto, por impulso animal, pelo medo e pela culpa. Isso significa que, infelizmente, nosso caráter não é o que gostaríamos de ter, é apenas o que temos.

Para os que não acreditam em planos pré-determinados por entidades superiores, nem na influência que uma entidade superior supostamente teria na vida humana, resta-lhes pensar que os acontecimentos, as contingências da vida são fruto de processos aleatórios somados a um pouco de vontade, capacidade e esforço. Esse senhor representa a conjunção de diversos processos aleatórios cuja consequência foi o sucesso, o reconhecimento e a fortuna (não necessariamente, mas também financeira).

Ter conhecido Woz, ter uma Kombi para vender e financiar os primeiros protótipos na garagem de seus pais, estudar caligrafia, aprender sobre a filosofia budista, ter sido pai prematuramente, ter conseguido invadir a Xerox para surrupiar suas ideias, ter sido expulso da companhia que ajudou a fundar, ter tido câncer e reconhecimento por parte de seus colegas e pelo público geral são apenas alguns dos fatores que, juntos, construíram a muralha de seu empreendimento em vida.

A conjunção de tecnologia, praticidade e bom-gosto desviou para um destino mais bonito os rumos desse mercado, assim como o iPod inaugurou um novo mercado, mudando a maneira como se consome música, o iPhone inaugurou um outro mercado e moldou a maneira como se fabricariam todos os telefones posteriores; o iPad criou, do quase nada, um mercado de produtos de consumo não-necessários, mas desejados. O sistema de dados e o computador criados na NeXT, a empresa criada após sua "expulsão" da Apple, a maneira como fez ressurgir a quase falida Pixar e sua volta triunfal à Maçã são testemunhos de sua capacidade gerencial e sua mentalidade visionária.

Sua vida pessoal (diga-se de passagem, hermeticamente protegida por ele) não nos interessa, muito menos a maneira como tratava seus funcionários e subalternos (nunca fui funcionário dele mesmo...), a obra de um homem não pode depender de suas realizações privadas - muitas das grandes figuras da história eram pessoas de comportamento duvidoso. É o legado que nos importa, a maneira como essas pessoas melhoraram as condições de vida na Terra, as ideias, mesmo simples, que mudam o rumo de antigos caminhos já trilhados demais.

Mas não se iluda - a motivação intrínseca dessas pessoas pode ser simplesmente a fortuna, e não há nada de mal nisso. A consequência da busca pela fortuna de uma pessoa como esse senhor é a popularização de ferramentas que tornam melhores nossos afazeres profissionais e nossos momentos de entretenimento. Novamente, sua vida pessoal pouco me interessa. Acredito, no entanto (e não tenho como prová-lo porque muito provavelmente nunca chegarei lá), que, depois de determinado nível de estabilidade econômica, a pessoa tenha outras motivações completamente diferentes - realização pessoal, fama e poder.

Finalmente, dentre os muitos paradigmas que esse senhor quebrou ao longo de sua carreira, foi o de que uma empresa moderna deve ser gerenciada pro-ativamente por seus funcionários, numa democracia quase anárquica. Esse senhor, convictamente autócrata, acreditava que um gerente deve participar de todas as etapas de criação e comercialização de um produto. Suas decisões ultrapassavam os limites de seu conhecimento técnico e penetravam em todos os setores da empresa, do design, passando pela engenharia de produto, até a política de preços. Uma empresa que possui esse regime tem a chance de se tornar, como a Maçã o é hoje, um baluarte do mercado e um exemplo a ser imitado. Para tanto, apenas uma condição é necessária - que esse autócrata seja uma pessoa como Steve Jobs.


"No man is an island, entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main. If a clod be washed away by the sea, Europe is the less, as well as if a promontory were, as well as if a manor of thy friend's or of thine own were: any man's death diminishes me, because I am involved in mankind, and therefore never send to know for whom the bells tolls; it tolls for thee."
John Donne.

Um abraço,
Rafael Lanzetti