Thursday, June 14, 2007

O tempo passa, o tempo voa...

Taí uma das ambições mais primordiais da filosofia ocidental - entender o tempo.





As primeiras tentativas foram feitas pelos pre-socráticos, tanto de entender quanto de medir o tempo. A civilização egípcia em Karnak, no entanto, já havia, por volta do ano 800 a.E.C., inventado a clepsidra, um enorme medidor do tempo com tubos por onde a água ia escoando e enchendo recipientes que representavam as partes do dia e da noite. O nome, porém, é grego, e a clepsidra que hoje conhecemos é oriunda daquela encontrada em Atenas e que, provavelmente, foi construída por volta do ano 500 a.E.C. Só para vocês terem uma idéia, aí vai uma foto de uma clepsidra moderna:









Mas quero chamar sua atenção para uma coisa interessante. O nome clepsidra quer dizer clepto (roubar, como em cleptomaníaco) + hidra (água). Já naquela época, os gregos possuíam esse conceito de que o tempo rouba-nos algo, a cada gota d'água que o tempo nos toma através da clepsidra, menos tempo de vida temos. Em outras palavras, estamos morrendo desde o momento em que nascemos.

Heráclito de Éfeso, o primeiro pre-socrático relativista, afirmava que "tudo flui", que "é impossível banhar-se duas vezes no mesmo rio". Ele já entendia que aquilo que nos é roubado pelo tempo, não volta mais; e, assim, estamos em constante (in/e)volução. O mundo é um sistema dinâmico, os átomos de Leucipo de Demócrito estão em constante movimento. Se leio um livro hoje que já li na infância, leio um livro diferente, porque eu sou uma pessoa diferente. E, a cada letra que digito deste texto, sou diferente. A cada piscada d'olho, não sou mais eu uma piscadela atrás.

Os romanos cicerianos, os estóicos e, principalmente, os epicuristas, tinham o motto diáfano do "Memento Mori", "aproveita a vida enquanto a tens". É o ideal do carpe diem, tão divulgado pela juventude de 1960 em todos os movimentos anarquistas (no bom sentido) daquela geração. A máxima tempus fugit, o tempo voa, título deste post, é do romano Virgílio, o da Eneida. Ovídio, outro gênio romano, afirmou, certa vez: "tempus edax rerum", "o tempo é o devorador de todas as coisas".

O ser humano sabe que, perdendo tempo, precisa aproveitá-lo, para que, à última gota da clepsidra, possa deixar de existir com a sensação do dever cumprido, como o apóstolo Paulo: "Combati o bom combate, encerrei a carreira, guardei a fé".

O fato é que, durante toda a antiguidade clássica, o tempo sempre foi um conceito pejorativo. O passar do tempo, para um humano que vivia, em média, 50 anos, em condições inóspitas e morria de doenças terríveis, era obviamente mal-vindo. O tempo envelhece, e a velhice, para o ocidental, era uma maldição dos deuses, como Shakespeare a descreve em As you like it: "sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything". Entenda-se "sans" aí como em francês, "sem", "without".

No entanto, a psique do oriental não era bem assim. Quando me deparo com escritos sobre o tempo na cultura clássica oriental (estou falando aqui obviamente do Oriente Médio, as culturas semitas [árabes e judeus], já que sequer considero o oriente distante, as culturas uralo-altaicas), estes parecem-me bem mais fatalistas e estóicos que seus equivalentes ocidentais. Vejam o que diz a Bíblia em Eclesiastes, a sabedoria de Jesus de Sirach:

Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo e edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.

Essa visão, bem mais estóica, como é a religião cristã, parece condizer com o tom das rubai de Omar Kaiam, sábio persa (portanto, indo-europeu) do século XII:


Ah, make the most of what we yet may spend

before we too into the dust descend;

dust into dust, and under dust, to lie,

sans wine, sans song, sans singer and – sans end!

Vemos aqui um primeiro momento otimista e epicurista e, em seguida, o pessimismo fatalista judaico. Aliás, veja a belíssima tradução de Haroldo de Campos para o poema:

Ah, vem, vivamos mais que a Vida, vem,
Antes que em pó nos deponham também,
Pó sobre pó, e sob o pó, pousados,
Sem Cor, sem Sol, sem Som, sem Sonho – sem!

A grosso modo, os orientais sabem que não tem jeito - então, como disse a Excelentíssima Ministra Marta Suplicy, eles "relaxam e gozam". Os ocidentais, mais revoltados, preferem xingar o tempo, ou então chutar o balde e fazer o que der na telha enquanto ele não acaba.

É preciso também notar que a passagem de tempo no oriente não é recebida culturamente da mesma maneira que no mundo ocidental. No oriente, existe o tempo do divino (cf.: "Por que mil anos para Deus são como um dia para os homens") e o mortal. A vida deles é orientada pelo tempo divino, mas se passa em tempo mortal. Ainda, tudo o que se refere à passagem de tempo (e a números, de maneira geral) na Bíblia, deve ser interpretado com muita cautela, pois os hebreus antigos tinham conceitos de tempo muito diferentes dos nossos, como o yom, mas isso é conversa para um texto futuro.

Voltanto ao Ocidente, com a oficialização da Igreja Cristã em 324 E.C., deu-se início à padronização do credo e da filosofia cristã, que se deve, em boa parte, à figura de Santo Agostinho de Hipona (e, é claro, a Tomás de Aquino). Agostinho, em suas Confissões, afirma: "Se ninguém me perguntar [o que é tempo], eu sei; se perguntar e eu tentar explicar, não sei." Assim, o filósofo-missionário dá início à concepção perceptiva do tempo - é o que se sente, mas não se pode explicar. O tempo existe de fato, já que sentimos seus efeitos, mas o que ele é?

O ser humano teme o inexplicável.

Observe a revolta shakespeareana:

"I wasted time, and now doth time waste me." (Richard II)

"To-morrow, and to-morrow and to-morrow, creeps in this petty pace from day to day, to the last minute of recorded time; and all our yesterdays have lighted fools, the way to dusty death." (Macbeth)

"What seest thou else in the dark backward and abysm of time?" (The Tempest)

John Milton dedicou um poema ao tempo, On time (que se pode degustar aqui). Observe os dois primeiros versos: "Fly envious Time, till thou run out thy race, Call on the lazy leaden-stepping hours".

James Bramston, satirista inglês do século XVIII: "What's not destroyed by Time's devouring hand?"

Lord Chesterfield, conde inglês do século XVII, em uma carta ao filho: "I recommend to you to take care of minutes: for hours will take care of themselves."

Hegel, já no século XIX, introduziu duas questões essenciais na filosofia moderna: a ciclicidade do tempo, através de sua dialética; e o conceito de Zeitgeist.

A dialética de Hegel propõe que tudo o que existe está em mudança, a junção de opostos forma a realidade (como Heráclito). Tudo existe até se transformar em algo novo. Para tudo há uma tese, cujo elemento conflitante é a antítese, e a mescla dos dois forma uma terceira definição, a síntese. Esta síntese, como possui em si uma tese, criará uma nova tríade de tese, antítese e síntese e assim, ad infinitum. É por isso que idéias, religiões, artes, ciências, economia, instituições estão em constante mudança dialética.

Ainda, Hegel afirma que todos nós estamos sujeitos ao tempo histórico (e esse é realmente um elemento novo na filosofia). Nem mesmo grandes gênios poderiam ter feito suas obras fora de seu tempo. Se, no século XXI, algum compositor fizesse uma obra parecida com a de Beethoven, seria apenas uma mímese, mesmo que fosse muito talentoso. Não podemos fugir ao tempo, ao Zeitgeist (Zeit = tempo, Geist = espírito, o Zeitgeist é o "espírito do tempo").

Um pouco mais tarde, os fenomenologistas, notadamente Heidegger, abordaram mais uma vez a questão. Na obra-prima Sein und Zeit (Ser e Tempo), Heidegger começa a desfiar o ser, a ex-sistência humana. Na 2a parte do livro, que trataria sobre o Tempo (a última gota da clepsidra caiu antes que Heidegger a pudesse ter escrito), Heidegger provavelmente teria chegado à conclusão de que Ser é Tempo. Se somos, somos no-tempo, o que somos agora, a nossa existência neste exato momento, é temporal, portanto, fenomenológica. Sem mais detalhes sobre isso (para não encher o saco de ninguém).

Uma das alusões mais geniais que já vi ao tempo e seus efeitos, está num conto de horror de Edgar Allan Poe, The mask of the red death (disponível aqui em inglês, ou aqui em português [como sempre, não se sabe quem fez a tradução. Sobre sua qualidade não vou dizer nada agora, uma vez que vou analisá-la aqui num futuro próximo]). No meio do conto, a figura de um relógio de pêndulo. Quanto o relógio do salão toca, o baile do Príncipe Próspero pára. A música pára, a dança pára, a alegria cessa e, por um momento, todos aterrorizados, de hora em hora, ouvem o badalar do pêndulo anunciando um novo ciclo de passagem do tempo. Quer um retrato da vida melhor que esse? Vivemos a vida em relativa alegria, num baile com música, diversão e gargalhadas. De vez em quando, porém, acabamos por pensar no tempo que passa (e que um dia terminará para nós), e nos advém o "desespero temporal". Mas logo o esquecemos e voltamos a dançar... até a próxima badalada.

Aliás, a representação pragmatizada do sr. Tempo, o relógio, acabou por carregar consigo o karma pejorativo de seu mestre. Em todo o mundo ocidental, os homens estão presos ao relógio - e o detestam. Quando morrem, como se se libertassem dos grilhões do tempo, era comum parar os relógios da casa do defunto exatamente à hora mortis.

Pois é, moral da história: no mundo ocidental, ninguém gosta do tempo, tadinho. Por que será? Do que temos medo? Da morte? Observem esse diálogo entre Hélio Pelegrino e o gênio Nelson Rodrigues:

(Hélio): - É, Nelson, o homem é triste porque morre.

(Nelson): - Não, Hélio, o homem é triste porque vive.

Para entendermos isso, precisamos entender o que é a morte e o que é a vida. Quando Pelegrino fala da morte, comete uma contradição teórica. A morte é a não-existência, portanto, não pode falar sobre o que ela é, apenas sobre o que ela não é. A morte é a não-vida. Já que não se pode falar da morte, só é possível falar da vida. E o que é a vida? A vida é lugar desde o qual a vida apresenta as possibilidades para a construção de uma singularidade, ela é o local desde o qual o homem se faz. Assim, só é possível ser feliz ou triste por conta da vida, e nunca da morte. A morte, assim, torna-se vazia para que se encha a vida.

Logo, se não é preciso temer algo que representa a não-existência, o confronto torna-se vazio. Tem razão a Dona Marta, relaxar e gozar é o que podemos fazer, aprender com o tempo, usá-lo a nosso favor, e nunca contra. E, em todas as circunstâncias, carpe diem, aproveitá-lo enquanto o temos.

Veja que interessante a passagem do tempo, se vista muito mais rapidamente que o normal: fotos de uma família tiradas por 30 anos consecutivos mostram o que o tempo nos faz - La flecha del tiempo

Por fim, um presente. Aprenda com este homem que sabe, infinitamente melhor do que eu, explicar a inexpressividade do tempo frente a um conceito muito mais poderoso:

O tempo passa? Não passa

Carlos Drummond de Andrade.

O tempo passa? Não passa

no abismo do coração.

Lá dentro perdura a graça

do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima

cada vez mais, nos reduz

a um só verso e uma rima

de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido

nem tempo a economizar.

O tempo é todo vestido

de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,

transcendem qualquer medida.

Além do amor, não há nada,

amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário

tanto o ontem como o agora,

e o teu aniversário

é um nascer toda hora.

E o nosso amor, que brotou

do tempo, não tem idade,

pois só quem ama escutou

o apelo da eternidade.

Um abraço e até a próxima gota da clepsidra,

Lanzetti

3 comments:

Cynthia Lanzetti said...

Meu anjo... que texto maravilhoso! Cada texto que você escreve nos faz pensar e contribui para sermos pessoas diferentes. Há alguns minutos eu era uma pessoa, e ao ler seu texto, torno-me outra. O medo da morte realmente advém de uma vida não vivida. Como você disse, da sensação de dever não cumprido. E para mim, aproveitar era fazer todas as coisas que eu podia ao mesmo tempo. Fazer todos os cursos, participar de todos os eventos. Vejo agora, que aproveitar pode ser dormir um pouco mais, ficar mais tempo perto de você, fazer as coisas com mais dedicação. Um romance que também discorre sobre a questão do tempo é Mrs. Dalloway(1925) de Virginia Woolf. A figura do relógio, o Big Ben, está sempre presente e quando ele toca, Clarissa (Mrs. Dalloway) repete em sua mente uma passagem de Cymbeline, Shakespeare:"Fear no more the heat o’ the sun / Nor the furious winter’s rages." Essas palavras são parte de um hino funerário que sugere que a morte seja abraçada como um alívio às dificuldades da vida. Portanto, são palavras que trazem conforto naquele instante. Clarissa teme a passagem do tempo e teme as memórias do passado que martelam em sua mente.

É isso!
Beijos!

Rafael Lanzetti said...

Dizer o quê? Essa é minha esposa! Sou o cara mais sortudo do mundo!

Anonymous said...

lindo.. absolutamente tocante...
abs
emerson