Depois de muito procrastinar, pus-me a redigir este texto sobre uma das obras que mais me marcaram até hoje - El filósofo Autodidacta, de Ibn-Tufayl.
Abu Bakr Muhammad ibn 'Abd al-Malik ibn Tufayl (conhecido simplesmente como Ibn-Tufayl ou Abentofail), filósofo, poeta, teólogo, matemático, astrônomo e médico, nasceu Guadix, na Andaluzia, no começo do século XII. Durante toda a chamada Baixa Idade Média, até o final do século XV, a Espanha, mais especificamente a Andaluzia (Al-Andalus) figurou-se explêndida em termos de arte, ciência, enfim, civilização. Foi uma das poucas regiões na geografia e história da humanidade onde viveram em paz judeus e muçulmanos. O primeiro Renascimento, muito antes do Renascimento Ocidental, ocorreu ali, por mãos e cabeças de árabes e judeus. Para os que estudam tradução, é extremamente importante investigar o que ocorreu na Escola de Toledo, a primeira instituição organizada de tradutores do mundo, onde foram estabelecidos os primórdios das teorias de tradução com as quais lidamos até hoje, principalmente através de Maimônides.
Abentofail cresceu neste ambiente iluminado, teve uma vida solitária e dedicada ao conhecimento e morreu no Marrocos por volta do ano 1185, deixando um legado intelectual incalculável. Sua obra mais conhecida é O filósofo autodidata.
No prólogo da novela, Abentofail já expressa sua maior inquietude - o conflito entre razão e fé. Sua tese, bem parecida com a dos primeiros apologistas cristãos, era a de que, ao usar boa razão, se chega à fé. É possível chegar à fé por revelação divina, mas também é possível chegar a Deus através da observação do mundo fenomênico.
No começo da novela, Abentofail introduz o protagonista, Hay Benyocdan e dá duas versões para o seu nascimento: a primeira, que teria sido criado por uma estranha conjunção de elementos a partir de um punhado de barro. A segunda, mais aceita, que teria nascido bastardo e lançado ao mar numa pequena balsa por sua mãe, temerosa de que alguém descobrisse seu delito. A partir daí, Abentofail descreve como o menino Hay cresceu numa ilha deserta (que alguns acreditam ser o Sri Lanka), e foi criado por uma gazela.
Assim como Adão, Hay logo se descobre nu e cobre suas vergonhas. Ao observar os outros animais, descobre que é o único que não está coberto com pelagem natural, e se sente sozinho, assim como Robinson Crusoé. Aliás, Borges chamou Hay de "Robinson Crusoé metafísico", daqui a pouco explico o porquê.
Dois acontecimentos, no entanto, mudam o curso de sua vida - a morte da gazela que o criara e o descobrimento do fogo. Quando a gazela morre, Hay, em sua angústia, começa a se perguntar o que existe na essência dos seres que os faz estar vivos. Assim, começa a dissecar o cadáver da gazela e a remexer em suas vísceras em busca do que seria a sua alma, tudo em vão. Ao descobrir acidentalmente o fogo, através de um raio, Hay fica maravilhado e imagina que o princípio da vida dos seres, a alma, deve ser algo similar ao fogo.
Depois disso, Hay começa a trabalhar - aperfeiçoa a arte da construção de cabanas, a confecção de roupa, a culinária e a domesticação de animais. Ao reparar, um dia, em seu rebanho, começa a pensar que a alma dos animais devia ser diferente da alma das plantas.
Para entender o mundo que o cerca, Hay começa a observar os astros e seus movimentos rotatórios. Neste ponto, Hay chega ao ápice de sua viagem filosófica - à conclusão de que, para existir tudo o que existe, no céu e na terra, para existir um mundo vivo e móvel, deve existir um ser superior que tudo comanda, e que tudo criou, que colocou no mundo tudo o que há. Hay chega a Deus - sem língua, sem civilização, sem escolaridade sistemática.
Depois disso, Hay considera que comer animais e arrancar frutos das árvores é uma afronta ao plano divino e se converte em um asceta fanático. Para assemelhar-se aos astros, decide imitar seus movimentos rotatórios e começa a rodar em volta de si mesmo e ao redor da ilha. Segundo meu amigo Pablo Maurette, filósofo argentino que me apresentou o texto de Abentofail em meados de 2001, em uma de nossas conversas,
En el siglo XIII, menos de cien años luego de la muerte de Abentofail, un
místico y poeta conocido como Rumi fundaría en Turquía la orden de los derviches
mevlevís, que subsiste hasta el día de hoy (aún se los puede ver girar como
trompos en sus templos de Estambul y de Konia). Los mevlevís, al igual que Hay
Benyocdan, giran imitando a los planetas para entrar en vertiginoso trance y
acercarse a la divinidad.
Finalmente, Hay se entrega à meditação, recolhendo-se a uma caverna. Dentro da caverna, tem um encontro místico com Deus, assim magistralmente descrito por Abentofail:
De este modo escuchó la voz de Dios que se le reveló como único y omnipotente,
como rey de reyes. En aquella cueva Hay Benyocdan se abismó y contempló lo que
ojo no vio, ni oído oyó, ni pudo ocurrírsele al corazón del hombre.
Um dia, chega à ilha Asal, um teólogo, pregador muçulmano renegado que fugia de seus perseguidores. Asal encontra Hay e ensina-lhe árabe e o Corão. Hay confirma, no texto sagrado dos muçulmanos, tudo aquilo que havia aprendido sozinho a partir da contemplação da natureza. Asal, espantando com aquela sabedoria incivilizada, decide se juntar a Hay em sua vida reclusa.
As interpretações do magistral texto de Abentofail são muitas, e não teria condições físicas e capacidade filosófica para fazê-las todas aqui. Quero focalizar apenas duas de minhas interpretações e deixar o texto para quem quiser comentar com suas próprias idéias.
A primeira coisa que podemos extrair do texto é que Hay, sem língua, possui pensamento, que vai se tornando tão complexo, que chega a Deus. É possível pensar sem língua? Prometo voltar a esse assunto em breve, mas, resumindo, posso dizer que, nós, seres humanos, somos dotados de uma habilidade ímpar denominada Linguagem. A Linguagem, Lógos em grego, é o que nos permite interagir com o mundo, é o que me faz acreditar que, se me puser de pé, o chão me servirá de base, que o objeto que vejo em cima de uma mesa pode ser palpado se estiver ao alcance de minhas mãos, que um sibilar na mata pode significar que uma cobra está a espreita. A Linguagem é inata, e não há como nos desvencilhar dela - ela é condição sine qua non para a vida. Num âmbito agora cultural, social, existe a língua, ligada diretamente ao grupo social em que estou inserido. A língua me permite pura e simplesmente comunicar com outros que partilham do mesmo meio social. A pergunta é: onde estaria o pensamento? Primordialmente na linguagem, ou apenas na língua? Se a resposta for a primeira, isso quer dizer que a lógica independe de rótulos, ou seja, é possível pensar sem palavras. Se a resposta, no entanto, for a segunda, a isso equivale dizer que só podemos pensar porque conhecemos: 1. os rótulos dos pensamentos (das palavras que os formam) e 2. as estruturas lógicas que podem ser formuladas a partir dos sistemas das línguas humanas. A tese de Abentofail é a de que o pensamento reside na Linguagem, é tão primordial e inato quanto ela. Abentofail estava certo? Deixo minha resposta para outro dia.
A segunda interpretação, um pouco mais ética e moral, tem a ver com o fato de Hay ter chegado a Deus. Abentofail sugere, com isso, que fé e lógica não são, como diz meu amigo Pablo, como duas mulheres do mesmo homem - quando se agrada uma, entristece-se a outra. Através da lógica também é possível chegar à fé. Pelo contrário, através do emprego da boa razão e da boa fé é possível, segundo o filósofo Andaluz, chegar ao mesmo destino.
Hay é o "Robinson metafísico", segundo Borges, justamente por estas duas razões - ele é um solitário eremita que, sem língua, sem civilização, tece pensamentos cada vez mais complexos, até que chega à fé, à crença naquilo que não se vê. É um Robinson Crusoé meio-oriental muito mais complexo filosoficamente e esquecido pela tradição ocidental.
Gostaria de saber o que meus leitores pensam sobre o texto de Abentofail. Se quiserem, escrevam comentários com suas interpretações. Todas as opiniões serão bem-vindas.
Desenho no começo do post: Hay observando os astros. Autor desconhecido.
Grande abraço,
Rafael Lanzetti
9 comments:
Caro Rafael,
Aqui Sergio Mello, ainda do Canada.
Gostei muito do seu artigo.
Excelente trabalho, como sempre.
Abracos.
Ia ser bacana poder achar esse livro. Com uma história bastante interessante, infelizmente não é muito conhecido ou divulgado. Eu, paricularmente, nunca tinha ouvido falar da obra ou do autor.
Na minha humilde opinião, usaria, como você, as 2 interpretações se me fosse perguntado sobre o pensamento humando. Acredito que podemos tanto pensar com palavras quanto com a simples imaginação da situação ocorrendo. Entretanto, creio que, uma vez aprendida uma língua, (diferentemente do caso do "Robinson insular"), torna-se muito difícil deixar de pensar sem valer-se de palavras para elaborar o raciocínio.
Obrigado, S�rgio, pela for�a!
D�nnys, concordo com voc� quando diz "uma vez aprendida uma l�ngua, torna-se muito dif�cil deixar de pensar sem valer-se de palavras para elaborar o racioc�nio." Minha opini�o � bem por a� como vou descrever em um post futuro. Mas, ser� que � poss�vel pensar sem antes aprender uma l�ngua, como voc� disse, apenas "com a simples imagina�o"? N�o dependeria a imagina�o, mesmo apenas visual, dos r�tulos que atribu�mos �s coisas do mundo?
Deveras complexo pro meu cérebro atulhado de cultura pop descartável :P
Porém, muy interessante, devo admitir. Em um conto do Paul Auster tem um personagem q é criado pelo pai sem contato com nenhuma língua (e, consequentemente, com nada at all), pq ele achava q a 'língua' q ele iria desenvolver por geração espontânea seria a língua de Deus ou something (imagino q o Paul Auster tenha tirado essa idéia de algum lugar, mas sounds cool anyway).
O personagem não tem os insights do seu filósofo autodidata e acaba virando um adulto um tanto freaky hehe
abços!
Pois � Pedro, um experimento assim foi feito no s�culo VII AC! Um fara� eg�pcio chamado Psamtik pagou um pastor para cuidar de dois beb�s e nunca, em nenhuma hip�tese, pronunciar alguma palavra. Um dia, o pastor entrou na cabana onde ficavam os beb�s e um deles caiu no ch�o e pronunciou a palavra becos. O fara� mandou os s�bios descobrirem de que l�ngua vinha isso e acabaram descobrindo que becos � p�o em fr�gio. O fara� ent�o decretou que a "l�ngua original" era o fr�gio! Experimentos semelhantes foram feitos pelo Imperador do Sacro Imp�rio Romano Frederick von Hohenstaufen no s�culo XIII e por James IV da Esc�cia, no s�culo XVI. Auster realmente n�o criou essa est�ria.
Um abra�o,
Lanzetti
Oi Rafael,
Terminei de ler o "O Filósofo autodidata" neste instante. Gostei muito do livro e de seus comentários; ajudaram-me a fixar o conteúdo.
Ah Ousei postar seu texto no meu blog sem solicitar autorização, o que faço agora, mas tomando o cuidado de citar a fonte.
Obrigada
Olá Rafael,
Aqui o Alan Dalles.
Concordo com a 1ª tese de que o pensamento reside na Linguagem.
Um humano q não interagisse com o seu meio, não aprende-se determinada linguagem, não se desenvolveria...
Eu não creio q exista idéias inatas, senão algumas condições inatas como respirar...Eu concilio o materialismo e o empirismo qndo digo q não nascemos sabendo de tudo, mas a partir das experiencias com o mundo material e com nossos sentidos é q construímos várias concepções sobre o mundo e a vida...Vamos desenvolvendo nossos conhecimentos ao longo da vida com influencias externas, tal como é a linguagem e os valores pré-estabelecidos.
Agora o q mais me intriga é se, um humano sem civilização, desenvolveria sua razão, ou viveria, de impulsos imediatos, como um animal...A segunda possibilidade é mais provavel já q relatam casos de crianças q foram criadas por chipanzes, lobos...Essas crianças nunca chegam a desenvolver sua razão e se limitam a viver como os animais q a criaram...
adorei seu blog, essa maquete ficou muito linda, aki estou juntando dicas e macetes que pelo pela web e peguei o seu também, porém estou juntando tudo no word pra fazer um arquivo apenas e colocar para download em algum servidor, gostaria de anexar esse seu trabalho ótimo com essas dicas, se estiver de acordo me informe por favor nesse email: luciano-ng@hotmail.com
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