Sunday, May 13, 2007

Quem tem coesão tem coerência?

Olá a tod@s,

como está escrito no Evangelho de S. Rafael 13:69, "Bem-aventurados os que têm paciência para ler meus posts, pois eles herdarão inexorável sabedoria."

Já que é assim, estamos aqui para mais um...

O texto de hoje é baseado numa figura, a digitalização da redação de um aluno, provavelmente de 1o grau, de um colégio particular. Obviamente, por razões éticas, não direi o nome do colégio, apenas direi que começa com "Dom" e termina com "Bosco". Leiam, antes de mais nada, a referida redação:


(Se você não conseguir ler o texto por conta do tamanho das letras, salve o arquivo em seu computador e dê zoom utilizando um programa qualquer de edição e visualização de imagens.)

Muito bem, a primeira pergunta é esta: o aluno recebeu a nota que merece?

Para respondê-la, vejamos primeiro o que foi avaliado. A nota atribuída é relacionada, nesse critério de avaliação, a duas categorias linguísticas - 1. Estrutura textual e 2. Adequação comunicacional. A Estrutura textual está ali divida em 3 subcategorias, a saber: coerência, coesão e unidade textual. Por sua vez, a Adequação comunicacional está subdividida em adequações discursiva, de linguagem, sintática e gráfica. A cada categoria são atribuídos 5,0 pontos. O aluno em questão conseguiu 2,7 pontos na primeira categoria (estrutura textual) e 4,0 na segunda (adequação comunicacional).

Antes de avaliar o desempenho do aluno, vamos avaliar o critério de avaliação: é perfeitamente possível compreender o motivo pelo qual as subcategorias "coesão" e "coerência" foram agrupadas na categoria "estrutura textual", uma vez que, juntas, formam a estrutura superficial e profunda de todo e qualquer texto. Para entendermos melhor, consideremos que "coesão" é a estrutura linguística, por meio de expressões coesivas, conhecidas como expressões de ligação (linking words), pronomes dêiticos, anáforas e catáforas, que dá corpo ao texto, que forma o alicerce para, sobre ele, colocarmos o significado. A coesão faz com que seja possível, linguisticamente, que o texto tenha coerência semântica e pragmática. A coerência, por sua vez, é a estrutura semântica, dita profunda, de significado produzido a partir da estrutura coesiva. Tudo bem, agora, o que seria "unidade textual" tal como aparece no esquema de avaliação da redação? OK, vou tentar chutar. Penso que o que o professor quis dizer com "unidade textual" poderia estar incluído em "coesão pragmática" e "coerência discursiva", em outras palavras, se o texto mantém o mesmo registro (formal, neutro ou informal), o mesmo estilo e a mesma coerência vocabular, por exemplo. Será?

No outro extremo, está a categoria "adequação comunicacional". A cada uma das subcategorias o professor atribui 0,2 ponto. A "gramática" do texto é avaliada nas subcategorias "adequação gráfica", "adequação sintática" e "adequação de linguagem", relacionadas, respectivamente, à ortografia (por que será que ortografia, coisa tão banal que pode ser corrigida até por um computador, ainda é tão superestimada no Brasil?), à propriedade das regras sintáticas utilizada e a... hmm, vejamos, "adequação de linguagem"? Seria o quê, exatamente? Será que o professor está se referindo ao uso de registro adequado, digamos, razoavelmente formal, próprio de ensaios acadêmicos (isso para o garoto não ficar usando coisas do tipo "pô, teacher, é chato pa kct fazê esses troço, prefiro tc no msn!")? Mas isso já não foi avaliado em "unidade textual"? Hein? Ainda tem uma subcategoria? É verdade, a "adequação discursiva". Quê? De novo? Eu posso apostar o quanto quiserem que 99% dos alunos avaliados por tal sistema não têm a mínima idéia de a que essas categorias se referem, nem saberiam diferençar coisa d'outra. Como é que eu posso ser avaliado e, aliás, para que serve uma avaliação se eu não entendo como ela é feita? Será mesmo que ortografia deve valer os mesmos 2 décimos que "adequação discursiva", por exemplo?

O que quero dizer com isso tudo é que boa parte dos nossos sistemas de avaliação no Brasil, seja lá do que for, em especial de uma coisa tão abstrata quanto redação (como se avalia, Deus meu, a qualidade de um texto usando números e categorias? A qualidade de um texto é quantificável?), é deficiente, não coerente, auto-contraditória.

Chega, deixe-me falar sobre o desempenho do aluno agora. E, para tanto, vou utilizar as definições de coerência e coesão supradadas. Segundo o professor avaliador, o aluno foi bem no que diz respeito à "adequação do texto", mas foi apenas razoável no que diz respeito à "estrutura do texto". Ora, ora, para o texto ser "adequado", será que não precisaria primeiro possuir estrutura coesa e coerente? Onde é que termina a coerência do texto e começa a sua adequação? Aliás, adequação exatamente a quê?

Se olharmos bem, vamos reparar que, no que diz respeito à coesão do texto, o aluno foi excelente. Você pode procurar que, tirando todas as abobrinhas do interior das sentenças, as margens coesivas estão todas lá, as linking words estão todas lá: "pois", "logo", "assim", "porque", só para citar algumas. Apesar de coeso, no entanto, o texto parece não ter coerência, parece não significar nada. Apenas parece.

Queria terminar o assunto dizendo o seguinte: existem dois tipos de coerência - a externa e a interna. A coerência externa é aquela que dá significado ao texto para qualquer pessoa que o ler. A interna, por sua vez, é própria do autor, ou talvez de um grupo específico de leitores. A Bíblia, por exemplo, não tem o mesmo sentido para cristãos e ateus. Esses dois grupos sociais lêem a Bíblia diferentemente (e absorvem dela diferentes significados) porque, para cada um, a Bíblia possui diferentes sistemas coerenciais, ditados principalmente pelas crenças que compartilham. Quando um aluno, utilizando sua coerência interna, compõe uma redação aparentemente sem nenhum significado, o que se dá, na verdade, é que o significado, que não deixa de existir, não consegue ultrapassar a barreira da língua para ser comunicado (no sentido etimológico de comunicare, tornar comum, público). Se quisermos realmente entender a redação, acharemos nela significado, muito inteligente até, demonstrando uma personalidade relativista e cética, mas, infelizmente, o texto não faz sentido para a maior parte das pessoas porque a língua, o meio, a ferramenta com a qual o texto foi lapidado, não possui propriedade coerencial externa. Esse aluno não precisa aprender a pensar, precisa aprender a usar a língua para expor seus pensamentos.

Uma coisa é ser inteligente, ser criativo, ter idéias. Outra, é saber expô-las em linguagem padrão, socialmente aceitável. Num mundo em que os padrões tomaram conta das ciências, da cultura e, infelizmente, até da arte, quem não consegue se adequar a eles, não terá nunca lugar ao sol.

Temos de mudar o mundo ou a nós mesmos?

Abraço,

Rafael Lanzetti

P.S.: Ah, quanto à pergunta do início do post, o aluno recebeu a nota que merecia? Na minha opinião, menos que merecia sua coesão e sua coerência interna, mais que merecia sua capacidade de adequar os pensamentos à linguagem padrão. Respondido?

4 comments:

Marcos AM Ramos said...

Cara, que análise mais profunda essa sua... Ainda bem que deixei de ser professor, eu dava as notas das redações seguindo um esquema um pouco mais próximo do "uni-duni-tê" do que isso que você descreveu no blog, hehehe
Abraço e sucesso pra você

Roberta said...

Cheguei a seu blog via Google. Você ainda o atualiza? Gostei muito de sua análise sobre a correção, e gostaria de lhe perguntar que sugestões você daria para corrigir uma redação de E. Fundamental II. Quais itens você colocaria, já que é inevitável que haja uma nota?

Evlyn said...

Também cheguei ao seu blog via google (eta paizão!!!) e achei muito interessante a análise da redação do garoto.Para dizer a verdade, se fosse avaliar o texto antes de ler o seu, não sei, não.... Acho que a nota seria bem menor. Espero que você atualize o blog, vale a pena!!!
Um abraço.

Anonymous said...

Por que nao:)