Olá a tod@s,
como está escrito no Evangelho de S. Rafael 13:69, "Bem-aventurados os que têm paciência para ler meus posts, pois eles herdarão inexorável sabedoria."
Já que é assim, estamos aqui para mais um...
O texto de hoje é baseado numa figura, a digitalização da redação de um aluno, provavelmente de 1o grau, de um colégio particular. Obviamente, por razões éticas, não direi o nome do colégio, apenas direi que começa com "Dom" e termina com "Bosco". Leiam, antes de mais nada, a referida redação:
(Se você não conseguir ler o texto por conta do tamanho das letras, salve o arquivo em seu computador e dê zoom utilizando um programa qualquer de edição e visualização de imagens.)
Muito bem, a primeira pergunta é esta: o aluno recebeu a nota que merece?
Para respondê-la, vejamos primeiro o que foi avaliado. A nota atribuída é relacionada, nesse critério de avaliação, a duas categorias linguísticas - 1. Estrutura textual e 2. Adequação comunicacional. A Estrutura textual está ali divida em 3 subcategorias, a saber: coerência, coesão e unidade textual. Por sua vez, a Adequação comunicacional está subdividida em adequações discursiva, de linguagem, sintática e gráfica. A cada categoria são atribuídos 5,0 pontos. O aluno em questão conseguiu 2,7 pontos na primeira categoria (estrutura textual) e 4,0 na segunda (adequação comunicacional).
Antes de avaliar o desempenho do aluno, vamos avaliar o critério de avaliação: é perfeitamente possível compreender o motivo pelo qual as subcategorias "coesão" e "coerência" foram agrupadas na categoria "estrutura textual", uma vez que, juntas, formam a estrutura superficial e profunda de todo e qualquer texto. Para entendermos melhor, consideremos que "coesão" é a estrutura linguística, por meio de expressões coesivas, conhecidas como expressões de ligação (linking words), pronomes dêiticos, anáforas e catáforas, que dá corpo ao texto, que forma o alicerce para, sobre ele, colocarmos o significado. A coesão faz com que seja possível, linguisticamente, que o texto tenha coerência semântica e pragmática. A coerência, por sua vez, é a estrutura semântica, dita profunda, de significado produzido a partir da estrutura coesiva. Tudo bem, agora, o que seria "unidade textual" tal como aparece no esquema de avaliação da redação? OK, vou tentar chutar. Penso que o que o professor quis dizer com "unidade textual" poderia estar incluído em "coesão pragmática" e "coerência discursiva", em outras palavras, se o texto mantém o mesmo registro (formal, neutro ou informal), o mesmo estilo e a mesma coerência vocabular, por exemplo. Será?
No outro extremo, está a categoria "adequação comunicacional". A cada uma das subcategorias o professor atribui 0,2 ponto. A "gramática" do texto é avaliada nas subcategorias "adequação gráfica", "adequação sintática" e "adequação de linguagem", relacionadas, respectivamente, à ortografia (por que será que ortografia, coisa tão banal que pode ser corrigida até por um computador, ainda é tão superestimada no Brasil?), à propriedade das regras sintáticas utilizada e a... hmm, vejamos, "adequação de linguagem"? Seria o quê, exatamente? Será que o professor está se referindo ao uso de registro adequado, digamos, razoavelmente formal, próprio de ensaios acadêmicos (isso para o garoto não ficar usando coisas do tipo "pô, teacher, é chato pa kct fazê esses troço, prefiro tc no msn!")? Mas isso já não foi avaliado em "unidade textual"? Hein? Ainda tem uma subcategoria? É verdade, a "adequação discursiva". Quê? De novo? Eu posso apostar o quanto quiserem que 99% dos alunos avaliados por tal sistema não têm a mínima idéia de a que essas categorias se referem, nem saberiam diferençar coisa d'outra. Como é que eu posso ser avaliado e, aliás, para que serve uma avaliação se eu não entendo como ela é feita? Será mesmo que ortografia deve valer os mesmos 2 décimos que "adequação discursiva", por exemplo?
O que quero dizer com isso tudo é que boa parte dos nossos sistemas de avaliação no Brasil, seja lá do que for, em especial de uma coisa tão abstrata quanto redação (como se avalia, Deus meu, a qualidade de um texto usando números e categorias? A qualidade de um texto é quantificável?), é deficiente, não coerente, auto-contraditória.
Chega, deixe-me falar sobre o desempenho do aluno agora. E, para tanto, vou utilizar as definições de coerência e coesão supradadas. Segundo o professor avaliador, o aluno foi bem no que diz respeito à "adequação do texto", mas foi apenas razoável no que diz respeito à "estrutura do texto". Ora, ora, para o texto ser "adequado", será que não precisaria primeiro possuir estrutura coesa e coerente? Onde é que termina a coerência do texto e começa a sua adequação? Aliás, adequação exatamente a quê?
Se olharmos bem, vamos reparar que, no que diz respeito à coesão do texto, o aluno foi excelente. Você pode procurar que, tirando todas as abobrinhas do interior das sentenças, as margens coesivas estão todas lá, as linking words estão todas lá: "pois", "logo", "assim", "porque", só para citar algumas. Apesar de coeso, no entanto, o texto parece não ter coerência, parece não significar nada. Apenas parece.
Queria terminar o assunto dizendo o seguinte: existem dois tipos de coerência - a externa e a interna. A coerência externa é aquela que dá significado ao texto para qualquer pessoa que o ler. A interna, por sua vez, é própria do autor, ou talvez de um grupo específico de leitores. A Bíblia, por exemplo, não tem o mesmo sentido para cristãos e ateus. Esses dois grupos sociais lêem a Bíblia diferentemente (e absorvem dela diferentes significados) porque, para cada um, a Bíblia possui diferentes sistemas coerenciais, ditados principalmente pelas crenças que compartilham. Quando um aluno, utilizando sua coerência interna, compõe uma redação aparentemente sem nenhum significado, o que se dá, na verdade, é que o significado, que não deixa de existir, não consegue ultrapassar a barreira da língua para ser comunicado (no sentido etimológico de comunicare, tornar comum, público). Se quisermos realmente entender a redação, acharemos nela significado, muito inteligente até, demonstrando uma personalidade relativista e cética, mas, infelizmente, o texto não faz sentido para a maior parte das pessoas porque a língua, o meio, a ferramenta com a qual o texto foi lapidado, não possui propriedade coerencial externa. Esse aluno não precisa aprender a pensar, precisa aprender a usar a língua para expor seus pensamentos.
Uma coisa é ser inteligente, ser criativo, ter idéias. Outra, é saber expô-las em linguagem padrão, socialmente aceitável. Num mundo em que os padrões tomaram conta das ciências, da cultura e, infelizmente, até da arte, quem não consegue se adequar a eles, não terá nunca lugar ao sol.
Temos de mudar o mundo ou a nós mesmos?
Abraço,
Rafael Lanzetti
P.S.: Ah, quanto à pergunta do início do post, o aluno recebeu a nota que merecia? Na minha opinião, menos que merecia sua coesão e sua coerência interna, mais que merecia sua capacidade de adequar os pensamentos à linguagem padrão. Respondido?
4 comments:
Cara, que análise mais profunda essa sua... Ainda bem que deixei de ser professor, eu dava as notas das redações seguindo um esquema um pouco mais próximo do "uni-duni-tê" do que isso que você descreveu no blog, hehehe
Abraço e sucesso pra você
Cheguei a seu blog via Google. Você ainda o atualiza? Gostei muito de sua análise sobre a correção, e gostaria de lhe perguntar que sugestões você daria para corrigir uma redação de E. Fundamental II. Quais itens você colocaria, já que é inevitável que haja uma nota?
Também cheguei ao seu blog via google (eta paizão!!!) e achei muito interessante a análise da redação do garoto.Para dizer a verdade, se fosse avaliar o texto antes de ler o seu, não sei, não.... Acho que a nota seria bem menor. Espero que você atualize o blog, vale a pena!!!
Um abraço.
Por que nao:)
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